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a quinta dimensão

Alguém criou o mundo. Pode ser que tenha sido Deus, ou pode ser que tenha sido Buda. Ou Shiva. Ou Tupã ou Pangu ou Vishnu ou até mesmo o Grande Monstro de Espaguete dos Céus, mas fato é, embaixo dos nossos pés, sólido como ignorância, há um planeta. O formato exato desse planeta ainda é amplamente discutido pelas mentes menos capazes e mais obstinadas da nossa geração, mas ninguém disputa o fato de que ao tropeçarmos e esmigalharmos os dentes contra o pavimento estamos, de fato, atropelando um corpo celeste de avantajadas proporções. Seja quem foi que criou o mundo, fez é um serviço muito do mal feito. A criação do universo foi toda cheia de floreios e nove horas mas deixou para trás um rastro gigante de outras criações que fazem mais atrapalhar do que ajudar a vida da pessoa habitante do dito tal mundo. O primeiro deles, e possivelmente o mais nefasto, foi o mito da sua própria criação. Só o fato do mundo estar aqui antes do ser humano já é motivo mais do que suficiente para que o ser humano organize-se em times que disputam para decidir qual o mito de criação mais criacionista que existe e porque aqueles dos times menos criacionistas, merecem morrer. Ora, tivesse o tal criador metido lá uma plaquinha de bronze assinando a obra, igual daquelas de inauguração de poder público, não tinha um que teria coragem de duvidar daquelas palavras. Quem é que duvida de uma placa de bronze? Outro interessante efeito colateral da criação do mundo, esse até que não tão nefasto, foi a criação do fim das coisas. Num golpe sagaz, daqueles que só o criador do universo poderia conceber, inventou de inventar que tudo o que fosse criado seria um dia destruído. Exceto algumas coisas como a água (que é a mesma desde a primeira molécula) ou a energia (que muda de cor, forma, tamanho, textura e continua circulando). A gente pode se meter a construir prédios, pontes e estátuas das mais belas mulheres já está sabendo, desde que o mundo é mundo (porque o saber também nasceu junto com o mundo) que o prédio vai cair, a ponte vai cair, a estátua vai cair e até as tetas da mulher mais linda um dia vão cair. Adianta colocar em pé? Vai virar tudo pó, menos o silicone, que demora,mas um dia volta a ser sílica e flacidez. A mãe natureza não leva desaforo para casa não. Esfrega mesmo na nossa cara! O ser humano, que o criador deixou criar uns baratinhos, também nasceu com data de validade. Até os seres humanos que os outros seres humanos criam não dura nada! A qualidade do material é tão chumbrega que não chega a 100 anos. Se passar dos 80 é lucro. E olha que lá pelos 50 já começa que falha daqui, falha dali, um lado funciona o outro não… É um terror. Era de se esperar que com tanta prática de reprodução, os novos modelos já viessem com uma garantia estendida, um couro mais resistente, amortecimento mais macio, especialmente nas generosas curvas… Mas não, vai despencar primeiro, depois vai virar adubo. Se até agora eu não te convenci que a criação do mundo foi um servicinho que minhanossasenhoradagotaserena, deixa eu te contar da ponta solta mais esquisita que até agora ninguém conseguiu amarrar: a matemática. Sim, a criação do mundo trouxe no arrabalde esse parasita venenoso que arruinou completamente minhas sextas e sétimas séries do ensino fundamental. E não, isso não foi uma invenção de uns arabes loucos que contavam pedrinhas que não existiam. A matemática, esse crime organizado, não surgiu com depois do mundo. É na matemática que o mundo existe. O mundo foi criado matematicamente já que a primeira condição para algo existir é aparecer nas 4 dimensões. Bom, ao menos na maioria delas, porque a física, a bastarda irmã mais velha e mais gostosa da matemática já resolveu ampliar as dimensões para 11 e até 26, mas isso é assunto para coisas bem menores (tipo prótons, neutrons, neutinos, quarks). Para criar o mundo, o criador de mundos já começou satisfazendo as quatro dimensões. Nasceu o tal mundo que seria a casinha dos dinossauros (e depois a nossa), com uma boa largura, uma altura respeitável e um tanto de profundidade. Só de nascer já tinha que ter matemática nas medidas, na gravidade, na rotação, na translação e na quarta dimensão, o tempo. Enquanto as outras vinha fartas, o tempo era a menor das dimensões. Nasceu o mundo com pouquinho, quase nada. Mas como em qualquer dimensão a pessoa vai para qualquer lado enquanto no tempo o caminho é um só (e não tem freio), logo já tinha mais de tempo do que de altura esse mundinho de meu deus. E deus no que que deu: tá velho, caindo aos pedaços e cheio problemas. Tá até pingando óleo pelos buracos na crosta e acumulando um tanto nas praias do nordeste brasileiro. A qualidade do material deve estar ali ali com a do ser humano. Não foi feito para durar, foi feito para dar trabalho. E é tanta ponta solta, tanto efeito colateral, tanto parasita que logo surge mais um chabu sem solução para o mundo: o idiota. O idiota é hoje, o recurso mais abundante da superfície terrestre: ocupa todas as quatro dimensões e sempre que morre um, nasce outro. O idiota é o eterno subproduto dos efeitos colaterais, exceto da matemática, porque a matemática nunca gerou idiotas, tanto quanto a Terra ser redonda. Como o planeta é esférico, os idiotas não conseguem achar o cantinho. Sem as arestas, o idiota fica andando em círculos e reclamando que na verdade não é exatamente assim, que tem que ver direito e que não entende as provas que a matemática já cansou de esfregar na cara dele. É por isso que a Terra deveria ser quadrada. Um cubo bem regular, com medidas exatas e ângulos de precisos 90 graus com uma placa de bronze indicando seu criador e suas dimensões exatas. Aí não só os idiotas ocupavam menos espaço como a matemática seria mais fácil. Aí: dois problemas numa tacada só. Mas não, cada metro quadrado mal medido desse planetóide redondo achatado nos pólos e esburacado de espinhas de onde verte óleo contém ao menos um idiota. Dois quando eles param para conversar. O fenômeno do surgimento do idiota que não enxerga os cantos das coisas não é recente e nem único. Diversos idiotas surgiram ao longo da história da humanidade. Idiotas famosos, que é claro, ficaram famosos pelos seus grandiosos mal feitos e não por seus nomes, como idiota da gravadora que resolveu não assinar contrato com os Beatles. Tem idiota famoso que entrou para a história em grande estilo ao tentar invadir a Rússia no inverno e teve até idiota em cargo importante, como o papa idiota que que resolveu questionar as teorias de Galileu Galilei. E como na natureza do universo tudo obedece a um perfeito equilíbrio, os surgimentos dos idiotas abriram o espaço para o surgimento de outra grande força motriz da humanidade: o malandro. Equivalentes em força, potência e velocidade, porém equilibrados por ocorrerem em sentidos opostos, o malandro e o idiota nasceram um para o outro e, graças a essa fortuita harmonia é que o universo se mantém estável: o idiota que não enxerga a um palmo a frente do seu nariz é o perfeito receptáculo para os avanços do malandro, que também não enxerga muito longe, mas pouco importa, já que ele só precisa saber 1 milímetro a mais do que o seu designado idiota. Aí, quando as duas forças se equilibram, o malandro consegue convencer o idiota de qualquer coisa. Até de que ele é um coach quântico que já identificou que é possível viver na quinta dimensão. A quinta dimensão até pode existir, mas não é essa que o malandro quântico se propõe a explicar para o idiota. Nada a ver com matéria escura ou a relatividade das distâncias, a quinta dimensão é uma forma de viver e pensar que permite uma maior liberdade do praticante, mais especificamente o idiota tem maior liberdade de todo o seu dinheiro e o malandro tem a maior liberdade de se dar bem. Tudo isso com um simples e-book de 10 páginas e um curso online de 8 horas por apenas R$ 399,95. E você ainda paga em 12 vezes!’ Assim o malandro cruza as três dimensões do plano físico e ainda marca presença na dimensão temporal, já que, como diz o ditado, todo dia um idiota e um malandro saem de casa para fazer negócios. É de se pensar que o idiota que criou esse mundo mal criado era um baita de um malandro.

As cartas do destino

De braços dados, o casal andava pela noite com tanta alegria e suavidade que parecia saltitar. O rapaz andava a passos firmes, mas a moça saltitava, definitivamente saltitava, já que ele era um bom tanto mais alto que ela e portanto, tinha pernas mais longas e passos maiores. Ela não se incomodava. Estava completamente apaixonada, assim como ele. Mas os tempos eram outros e ele tinha uma obrigação moral de conter-se. Era homem, afinal de contas. Homem não faz essas coisas. Mas ela saltitava pendurada no braço dele. Era noite de verão e a grama alta ainda estava úmida da chuva daquela tarde. Ele suava levemente por baixo do terno e ela estava esplendorosa com seu vestido azul esvoaçante. O ar morno era território de vagalumes, mas o cair da noite trazia um frescor que só perdia em acalento para a memória da maçã do amor, que ela já havia comido duas. O casal deixava a aglomeração das barracas de doces, das tendas dos jogos e brincadeiras e do vai e vem do povo da cidade, deslumbrado pela novidade que haviam trazido esse ano: a roda gigante. Assim como o resto da população, eles também haviam enfrentado a fila e conseguido subir no aparelho. Ela vibrava como criança. Ele foi com medo, mas jamais deixaria transparecer. Homem de outros tempos. As luzes da festa perdia a força na distância emoldurando com pingos de cor e brilho o casal que rumava de volta para a cidade pelo caminho de chão batido. Havia sido a noite perfeita para os namorados e ele estava pronto para tirar do bolso a aliança que trouxera e não tivera coragem de presentear sua amada no alto da roda gigante como planejara. O medo não o deixou soltar a mão das ferragens nem por um segundo. Antes que cruzassem o grande portal de fitas e bandeirolas que anunciava a entrada da feira, notaram uma tenda pequena de panos escuros. Uma pequena placa de madeira entalhada com capricho dizia somente "Madame Carmen". Estranho que não a haviam visto na entrada, mas essa estranheza não durou um segundo: ela o puxava pela mão e tateava pelos panos para encontrar a fenda que a permitissem entrar, enquanto ele media que o espaço da tenda que definitivamente não comportava os dois e mais a cigana. Também mediu que boatos diziam que essa gente malandra conseguia depenar quem cruzasse seu caminho. Ele não colocaria a mão na carteira de jeito nenhum! Já gastara demais por uma noite. Lá dentro encontrou sua namorada sentada em um confortável banquinho almofadado cumprimentando a senhora do outro lado da mesa redonda com um globo de vidro ao centro. Tirou o chapéu, mas não encontrou onde pendurá-lo, então sentou-se no banco ao lado com ele nas mãos. A iluminação da tenda era tão fraca que ele não podia ver o tecido por trás da cigana. Nem ao seu lado. - Queremos saber se o nosso amor vai durar! Ah, e quantos filhos vamos ter! Madame Carmen puxou o baralho de algum compartimento debaixo da mesa e escorregou as cartas para fora da embalagem. A primeira coisa que o casal percebeu era que o baralho brilhava. A dança das cartas nas mãos precisas da ciganda era hipnótica. Os arcanos se abriam em leque como uma borboleta despertando, iluminando as rugas no rosto da cartomante e depois se fechavam em suas mãos, indo e vindo, dobrando-se sobre si mesmas. Ela depositou o maço em frente da jovem empolgada e pediu que cortasse. O homem notou a indisfarçável alegria da namorada em participar do truque. Ela separou o maço em dois e a cigana os juntou novamente. Abriu as cartas em leque e puxou uma. Era uma carta ricamente adornada com flores dispostas em um desenho lógico. Seu número era escrito com voltas e floreios que pareciam crescer como uma trepadeira. Enquanto a carta trafegava pelo ar até ser deitada na mesa à sua frente, a luz parecia escorrer como um líquido por trás das flores. - Ah, sim, vejo felicidade no caminho de vocês. Ela era só sorrisos. Ele, desconfiado, correu a mão pelo paletó discretamente para sentir a espessura da carteira dentro do bolso. Sim, ainda estava lá, consideravelmente mais magra do que quando chegara a feira, mas ainda assim, intocada. - Sim, muita felicidade nos próximos anos. A cigana tirou outra carta, desta vez com símbolos geométricos, tão detalhados quanto as flores. A cor era outra e novamente a luz líquida ao fundo se mexia. - Vejo uma mudança importante na vida de vocês dois, parece que vocês… oh! Pela primeira vez, a cigana olhava pra ele. Sorriu um sorriso cúmplice e piscou rapidamente. - Uma mudança de vida muito bem vinda! Muitos amigos e parentes. Ele correu a mão novamente pelo paletó para o outro bolso, onde estava a aliança. Pronto! A cigana sabia que a aliança estava lá. Será que ela tentaria furtá-la? Pelo sim pelo não, ajeitou seu banco um pouquinho para trás. Correram mais cartas e agora a mesa estava mais festiva do que a feira toda. As cores e os adornos das cartas pareciam ter uma pulsação, uma vida própria que balançava como uma maré, indo e vindo. Desconfiado e incomodado, ele queria sair dali de todo o jeito agarrando firmemente os dois bolsos do paletó e proteger o que tinha de valioso. Sua namorada, no entanto, estava no céu. A senhora tirou mais uma carta, desta vez com uma figura de um homem em roupas coloridas e espalhafatosas. Ele juraria que aquele homem de longas barbas estava se mexendo. O desfile da cores e luzes sobre aquela mesa o deixava tonto. Seria um truque para distraí-lo? - Eu vejo filhos sim... O tarô de Madame Carmen não era um truque. Pergunte a qualquer cigana e ela vai dizer que herdou as cartas da mãe que lhe ensinou o ofício de consultar os astros, que aprendeu com a mãe dela que por sua vez aprendeu com sua mãe em uma longa dinastia de sábias místicas que se perde na história. Algumas podem dizer que fora presente de um velho sábio, ou que foram adquiridas em um ritual em noite de lua cheia. Esta noite, no entanto, o casal ouviria uma história diferente. Este baralho foi ganho em uma mesa de jogo, em uma aposta muito alta contra um cavalheiro misterioso. Este cavalheiro vestido com um terno impecável, sob uma cartola caríssima, de óculos escuros e luvas de pelica brancas como a neve havia ganho de todos no salão esfumaçado, até que na única rodada perdeu para a cigana, o que a levou a desconfiar que seu ganho não fora acaso ou golpe de sorte. Com um prêmio daquele em mãos, sequer desconfiou que o cavalheiro de modos refinados pudesse ser outra coisa que um rico excêntrico. - Vejo dois filhos homens. Nascerão fortes e saudáveis.. Era de se pensar que esse cavalheiro fosse o diabo buscando almas para tragar ao inferno. Não era. Era o destino. - Seu filho mais velho será muito bonito e encantará as moças da cidade. O destino vem ao mundo para garantir que se cumpra seu intento. Uma das maneiras que ele encontrou para exercer seu domínio é deixar que as pessoas conhecessem seu verdadeiro destino. Por isso perder o baralho tão facilmente na mesa de apostas. O baralho de tarô que a cigana ganhou revela somente… - Seu mais novo será… muito feio. Magrelo, encurvado. Um pouco burro também. … a verdade. O homem a princípio não entendeu. Essa cigana está falando sério? A moça está chocada. - Sim, feio e burro, ele vai ser muito solitário… Quando sua namorada verte as primeiras lágrimas, ele cai em si da ofensa e levanta-se derrubando o banquinho, agitando a mesa. - Como ousa, velha doida??! - É o que dizem as cartas… Mas o mais novo vai conseguir se casar… Um dia… Bem velho… Você não vai estar lá para ver porque já estará morto há muito tempo. - Disparates! Toma-me por um idiota! - Ele puxa a velha pelo colarinho, erguendo-a sobre a mesa, espalhando as cartas. Sua namorada chora copiosamente. - Você será morto com um tiro no peito pelo marido da sua amante… - A cigana explica em pânico, apologeticamente segurando uma carta. Ela vê o punho dele levantar-se para desferir um soco, mas não consegue parar de falar - Sua esposa sabe das suas traições mas tem vergonha de confrontá-lo. Vocês serão muito infelizes... A namorada explode em soluços. A velha fecha os olhos e torce a cara, aguardando o golpe, que não vem. O homem a empurra de volta a sua cadeira que quase tomba. - Venha, meu amor, vamos embora dessa pocilga. Velha louca! - Ele tateia algumas vezes em busca da fenda nos tecidos e enfim consegue sair. Sua namorada vai atrás, sua felicidade destruída. Do lado de fora, o ar morno da noite parece os trazer de volta à realidade. A moça ainda soluça baixinho. O homem, inconformado confere os bolsos novamente. Carteira e aliança ainda estão no mesmo lugar. Ele sai andando a passos firmes e ela o segue, saltitando para conseguir alcançar seus passos longos. Ele se pergunta se o destino irá se cumprir, se ele terá uma amante com um marido violento. Ela fica feliz que o filho mais novo enfim irá se casar.

a cidade que se reflete

"o viajante ao chegar depara-se com duas cidades: uma perpendicular sobre o lago e a outra refletida de cabeça para baixo. Nada existe e nada acontece na primeira Valdrada sem que se repita na segunda" - Ítalo Calvino, As Cidades Invisíveis Ninguém sabe como surgiu esse fenômeno, porque a cidade já é antiga, mas o fato é que a cidade de Valdrana sempre teve e sempre terá sua versão duplicada invertida e antigravitacional logo abaixo. Em não havendo outro exemplo em todo o reino de uma cidade espelhada e sendo módicos os registros históricos, é de se imaginar que o fenômeno seja graças ao lago sobre o qual a cidade repousa, e não por culpa da cidade. O turista que se aproxima por sobre o morro é recebido pela resplandecente vista do lago fendado ao meio pela ponte de pedra que liga uma margem à outra. À margem de cá, o turista se aproxima cauteloso. À margem de lá, duas cidades se equilibram, uma sobre as fundações da outra. O lado de cá do lago, curiosamente é apenas um lago. Com muito sucesso o viajante (ou qualquer pessoa) pode observar seu próprio reflexo, deturpado pela coloração verde e marrom das águas e pela delicada marola do vento. Também com muito sucesso o viajante pode tocar a água e apagar essa tosca versão com um movimento. Ao cruzar a ponte em determinado ponto do lago, a água se torna mais límpida, apesar de não mudar de coloração. O caminhante mal nota a transação, tem apenas a sensação incômoda de que está sendo seguido ou observado. Ao alcance dos olhos encontra apenas o próprio reflexo olhando de volta, este alienígena muito familiar que se porta como se fora a própria pessoa, levando o mesmo sorriso, e o mesmo aceno em um mórbido jogo de imitação. Poucas são as pessoas que conseguem enxergar no seu duplo logo abaixo da ponte a faísca da vida em seus olhos. Aqueles de fraca constituição desmaiam ou sentem súbitas tonturas. Aqueles que podem, correm em pânico de volta à margem segura, onde reside a familiar sensação de ser único no mundo. Aqueles de verdadeira fibra (ou que passam pela ponte sem sequer uma espiada sobre sua borda), chegam aos portões de Valdrana, uma cidade acolhedora, casa de um povo justo e trabalhador, sério porém acolhedor e que, mais do que qualquer coisa, só gostaria de tocar adiante suas vidas. É seguro inferir que o comércio oriundo de outras cidades mingua. O fenômeno da cidade erguida sobre seu próprio reflexo pode ser observada em toda sua perfeita simetria da margem de cá do lago, de onde a distância dá ao observador a total amplitude do fenômeno: não há uma sequer folha de árvore, um tijolo carcomido, um bicho que seja que não se encontre tanto na cidade de cima quanto na cidade de baixo, ainda que na posição oposta a primeira, visto que se tratam de cidades espelhadas. Então compete aqui um curioso fenômeno: o cidadão de cá (digamos o candeeiro) que na cidade de cima é destro, na cidade de baixo é canhoto. E enquanto um segue a avenida da esquerda para a direita, acionando com sua longa vareta cada um dos postes, o outro segue a mesma rota, porém da direita para a esquerda, a partir do ponto de vista do viajante que goza, da margem distante do lago, do melhor ponto de vista da cidade. Ao questionar-se um cidadão valdranense sobre sua curiosa situação, o viajante é recebido com um sorriso débil porém sincero. Não confunda essa expressão com desprezo. Não é nada disso. O motivo é que o cidadão médio costuma não pensar sobre seus clones vizinhos, já que raramente suas vidas são afetadas pela presença do outro, que muito que poderia não existir. Relatam mais experiência no assunto os guardas do portão e da amurada que faz frente à cidade e se projeto sobre o lago. Dizem eles que ouvem perfeitamente as ordens gritadas por seus oficiais superiores, mas também conseguem ouvir às vezes a exata mesma ordem gritada no exato mesmo momento pelo oficial superior de seus pares. Sorte que a ordem é exatamente a mesma, pois esteja o vento soprando um pouco mais forte em sua direção, eles teriam dúvida a qual sargento obedecer, se o seu ou o do reflexo. Mas não são apenas as vozes que se chocam no limite entre as cidades. Eventualmente um ou outro objeto despenca da cidade em direção ao lago. Nessas ocasiões, tal como a maçã já mordida perdida pelo condutor da carroça que vinha das fazendas, um objeto chega à superfície do lago no exato mesmo momento em que outro objeto subia furiosamente das profundezas da cidade reflexo. As maçãs, para orgulho de Newton, chocaram-se exatamente na superfície do lago, fronteira entre as duas cidades e espatifaram-se em pedaços diversos que se diluíram no movimento do lago. Pedaços mínimos foram então carregados pelo leve fluir das águas. Na ocasião, não foi dada maior importância ao fato, porém a situação tornou-se crítica quando uma das pedras do muro descolou-se da argamassa e despencou como um míssil em direção ao lago. Encontrando pedra semelhante em trajetória retilínea e uniforme em sentido contrário, a pedra quebrou-se em cacos menores que quicaram descrevendo um perfeito arco e novamente aterrissaram junto aos seus pares, se fragmentando em pedaços ainda menores, que novamente descreveram arcos (ainda que menores) e repousaram em seus pares simétricos durante algumas semanas, enquanto eram lentamente varridas pela maré para longe do muro até que, em algum ponto indeterminado do lago, longe da influência de seu reflexo e pode finalmente repousar no leito, onde a gravidade em geral ordena que pedras residam. O acidente, pensou-se, poderia ter sido diferente, e a pedra poderia ter vindo parar do lado de cá, pensaram as autoridades, e portanto uma reunião do conselho de sábios e de legisladores da cidade foi conclamado. Cientes que nunca na pouca história registrada de Valdrana um objeto havia ficado despareado e jamais havia algo atravessado a superfície do lago, o conjunto decidiu legislar que nada em hipótese alguma pudesse ser atirado ao lago, nem intencionalmente, nem por acidente decorrente de inação por parte da prefeitura ou de esferas privadas. Afinal, há uma primeira vez para tudo. Crime esse punível com arremesso do culpado por cima da amurada de cara no lago, onde com certeza o criminoso de cá se chocaria com o criminoso simétrico do lado de lá e sofreriam ambos severas contusões. Ciente de que na outra cidade, tudo se realiza em movimentos exatamente iguais, sentiram-se seguros de que a lei seria cumprida em ambas as cidades. E assim seguia o rumo das duas porém única cidade de Valdrana, até o dia que um horrendo assassinato ocorreu. Antes de que o assassinato ocorresse porém, um outro óbito trazia tragédia à Valdrana. Sucumbiu sob uma forte e indeterminada doença a noiva de um jovem aprendiz de ferreiro. Um caso como esse, embora triste não causava nota. Essas coisas acontecem, afinal de contas, e quem há de duvidar dos desígnios do senhor destino sobre o homem? Mas aplacar a desesperança do jovem apaixonado ferreiro não era tão simples. Deixou sua casa atarantado, correndo pelas ruas da cidade em busca de uma solução, nem que fosse a solução final e, ignorando a nova legislação, rumou para o muro da cidade, de onde se atiraria colocando fim à própria vida, já que não poderia viver em tamanha agonia. Debruçado sobre as pedras do parapeito, antes que pudesse ser contido pelos soldados de plantão, percebeu do lado de baixo o rosto do outro, na mesma posição, olhando-o de volta. Ciente das propriedades de igualdade entre as duas cidades, resolveu que ali do outro lado, sua amada ainda vivia. Foi logicamente em vão que os soldados e os demais habitantes o tentassem dissuadir da ideia despropositada que se sua noiva viera a falecer na cidade de cá, na cidade de lá, da mesma forma sua noiva, ou melhor a noiva do aprendiz de ferreiro de lá, também havia partido. Mentes apaixonadas podem ser muito difíceis de moldar à realidade, ainda mais aquelas dos jovens. Desceu furioso das escadas que levavam ao portão da cidade e já na ponte, que era uma altura um pouco menor, arremessou-se com os punhos em riste em direção ao seu reflexo na água. Que briga seguiu-se! Jovem, esbelto, no ápice de sua forma física e tomado de uma energia movida pelo fervor que lhe corria nas veias, golpeava a superfície da água com punhos e pernas, espalhando água para todos os lados. Cada golpe seu aterrissava exatamente no punho do jovem aprendiz de ferreiro do lado de lá, que havia também se jogado da ponte com provavelmente o intuito de defender sua honra. Em instantes a água já tingia-se de sangue e ambos agachados um sobre o outro já portavam dedos quebrados, joelhos escalavrados e tornozelos torcidos em posições estranhas. Alguns, da ponte torciam. Um tanto ainda gastava tempo tentando dissuadir a empreitada. Outros ainda, riam, como se testemunhassem um bêbado atacar sua própria sombra projetada no chão. Até que na agitação da água, um dos braços do ferreiro da cidade de cá vazou a superfície e, mesmo com toda dor do membro arrebentado, conseguiu envolver o pescoço do outro. A multidão que testemunhava o fato silenciou-se ante a brutalidade do gesto e sua eficiência. O aprendiz de ferreiro que estava debaixo das ondas parecia finalmente perder o ar e seu olhar, da fúria reflexa, passou ao pânico da iminência da morte. Dois ou três cidadãos desceram da ponte o mais rápido o possível e rumaram até o local da briga, equilibrando-se precariamente sobre as solas dos pés dos seus duplos, mas chegaram tarde demais: o ferreiro do lado de lá, estrangulado, desequilibrou-se dos pontos de contato com o ferreiro do lado de cá e emergiu no ar daquela tarde incapaz de sugar o ar, vindo a falecer asfixiado pela atmosfera. Deitado sobre ele, o ferreiro do lado de cá, respingado do próprio sangue, soltou um sorriso satisfeito por um breve momento, mas logo perdeu seu entusiasmo. Sem o equilíbrio do seu reflexo, caiu na água e, não sabendo nadar, afogou-se e afundou no lago, mas não por muito tempo, pois breve seu cadáver voltava a flutuar, ao lado de sua vítima. O viúvo falecido desconsolado voltava a obedecer a imutável lei de Valdrana, na qual tudo e todos possuem uma cópia exata em reflexo no lago. Mesmo que simétricos, com ferimentos semelhantes, os cadáveres agora ostentavam sua paridade lado a lado, ao invés de um sobre o outro. O de cá flutuava de costas na água, o de lá flutuava sob a superfície. Novamente o conselho se reuniu, desta vez sobre a ponte, para que o conselho da outra metade da cidade pudesse se reunir em conjunto e puseram-se a debater em conjunto a trágica situação que ocorrera. Não surpreendentemente, ambas as cidades possuíam pontos de vista semelhantes. A lei em Valdrana sempre fora severa e os culpados punidos breve. Porém logo descobriu-se que o caso não possuía figura jurídica que se enquadrasse. Não havia sequer certeza que de houvera um crime, visto que ambos jovens haviam engajado em uma briga plenamente cientes de seu equilíbrio de forças e nenhum deles havia golpeado o outro à morte. Houvera um homicídio? Ou um suicídio? Duplo homicídio? Inconformadas, as famílias de ambos os ferreiros cuspiam ódio contra a família do outro com sede de justiça. E quanto mais seguia o debate, mais injustiçados sentiam-se os parentes. Ao fim, decidiram os magistrados que não houvera homicídio. Fora um suicídio seguido de suicídio. E não se falou mais nisso.

meritocracia

Quem quer, consegue. Quem se esforça, alcança. Não vem com nhé nhé nhé, não vem com mimimi. Por exemplo, do outro lado da rua, mora o Seo Pirajá, adentrado em anos, saído do convívio. Tá lá enfurnado e não quer saber. Só coloca o nariz para fora de casa para arrancar gramíneas das pedras da calçada. E nem sempre. A casa dele, de esquina, tem um portão de grade baixinho. Coisa de um metro e poucos. O portão barra o acesso aos degraus que dão na porta principal, de madeira. Ali no fim dos degraus, um patamar coberto, protegido por paredes em dois lados. A arquitetura ideal para abrigar o desabrigado, algo que acontece bastante. Quando nos mudamos para cá, morava um doidão alucinado. Seo Pirajá pôs esse para correr quando ele começou a criar hamsters, bichinhos que comprovavam a doidice: eram duas baita ratazanas. O acampamento ficou vago um bom tempo. Aí apareceu esse outro bebum. A gente do lado de cá da rua não se mete nas coisas dos outros. Se o gentil senhor quer dar abrigo para os desafortunados, vou eu lá reprovar? Mas não era bem assim. Umas semanas atrás o velhinho saiu da sua toca para tentar pescar os pertences do mendigo mais recente com uma vareta e uma cara de nojo. Estava tentando expulsar mais um inquilino indesejado. Mas não com muita veemência. Acho que ele não era muito fã de confronto. Resultado, ficou o mendigo lotado no AirBnB gratuito. Até ontem, é claro. Ontem à noite estamos aqui na marcha lenta de quem encerra o expediente noturno e ouvimos uma movimentação estranha no camarote vip. O mendigo conseguira arrastar uma maluca para a suíte presidencial do Pirajá Palace Hotel. E pelas palavras que o vento trazia a senhora já havia dobrado o cabo da boa esperança. Se gabava com palavras pastosas que poderia escalar o portãozinho. Precisamos lembrar neste momento que: - Ontem a noite estava frio - O portãozinho vive trancado - O espaço ali é apertado e comprimido por degraus diversos - O mendigo é um baita de um bêbado - O mendigo é um baita de um fedido - O mendingo é um baita de um feioso Esses pontos por si só já devem ilustrar o quando o sem vergonha tem mérito na sua caçada: com esse fenótipo impressionante, conseguiu convencer a tia a escalar o portão para se aninhar debaixo da marquise. E, bem, uma vez lá conseguiu convencê-la de muito mais. Daqui da minha varanda tive a privilegiada vista aérea da bunda pelada peluda do homem subir e descer. A essas alturas, finalmente Seo Pirajá decidiu reclamar seu território invadido e ligou para a polícia. Chegaram 1 viatura e mais duas motos no batalhão do empata-foda. Pegaram os dois com a boca na botija. Bem, um dos dois estava com a boca na botija e o outro estava... Olha, vou deixar o kama sutra para lá. Acredite em mim, não estava bonito não. Seguiu-se breve bate boca entre policiais e o casal. Mas logo o pessoal da farda trocou o bate boca pelo bate na cara mesmo e desentocaram os pombinhos. Primeiro desentocaram o pedinte, que já estava acostumado ao baculejo e ficou por ali esperando o que o braço forte da lei decidisse fazer. Já a sua consorte foi mais difícil de desalojar. A agilidade que ela demonstrou na entrada não foi a mesma da saída. Devia estar um pouco cansada. Ela clamava de lá de dentro: - Calma! Eu já sou de idade! E a policial (a única mulher entre as fardas), fina como canapé de mortadela berrou do meio da rua: - Para dar o cu você pulou rapidinho, né! E a sra. mendigo redarguiu ultrajada: - Epa! O cu eu não dei não! Entre trancos e impropérios, a dona deixou o ninho de amor para encarar a dura dos canas, mas é claro, sem admitir derrota. Você acha que tomar enquadro da polícia seria o final épico para um #dateruim, não seria? Essa senhora ainda se viu na obrigação de defender sua posição, ao invés de sair de mansinho. Gastou uma saliva explicando que era uma senhora direita, que se dava ao respeito e que não ía com qualquer um. E eu decidia qual seria a maneira menos pior de acordar minha filha: se com a arguição da auto-defesa da maluca, ou se com as minhas risadas histéricas que eu segurava a ponto de quase infartar. O mendigo, pivô do forfé todo curtia uma brisa ali no cantinho, sem uma palavra. Acho que é porque ele já havia conseguido o que queria. Findo o espetáculo, polícia para um lado, desabrigados para o outro e minha filha dormindo como um anjinho, fiquei aqui pensando. O cara fede, não fala coisa com coisa, está sempre bêbado e mora tendo invadido um quadradinho frio cheio de degraus exposto para a rua que só podia acabar como acabou, levando uma sova da polícia. Deve ter uma lábia impressionante. Méritos para ele.

deus foi ali no boteco

Era terça feira e chovia, mas ele entrou sequinho no buteco porque era Deus e Deus pode muito bem desviar de pingos de chuva, ou dobrá-los, ou convertê-los em neve, poeira, areia, isopor, flocos de aveia ou pó de pirlimpimpim, que não existe, mas se Ele quiser, existe. Mas não quis. Só queria uma cerveja, uma pinga, uma porção de torresmo sentado na mesa da calçada e se possível, um joguinho de sinuca, que sabia não teria adversários. Não tem muita graça jogar contra alguém que é onisciente e onipotente. Deus não perdia na sinuca. Nem no truco. Nem no xadrez, no War ou no Fortnite. Deus não sabe perder. Mas sabe beber. E beber com Deus é uma delícia, porque das histórias, ele sabia todas. Inclusive as histórias mais escabrosas sobre os presentes, mas essas ele não revelava porque Deus é elegância. Conhece os ritos de sociais humanos muito bem. Deus não inventou o nebuloso código de polidez pelo qual vivem os homens e mulheres do buteco, mas inventou os homens e mulheres, inclusive os do buteco. Como bom pai, Deus sabe brincar dentro das regras que as crianças inventaram. Se não as crianças choram, claro. Uma das regras é que Deus pede torresmo e pinga e se lambuza. Deus inventou o torresmo, mas não inventou a pinga. Deus inventou o fígado, mas ele não fez muita força para ter um, então ele não fica ruim quando toma pinga. Deus inventou as artérias e distribuiu para todos os seres humanos, mas não quis decorar o próprio peito com nenhuma delas, porque se ele instala um fígado e um estômago tem logo que instalar um monte de artéria e depois sangue para lubrificar e aí vem junto o LDL e o HDL depois tem que limpar das placas de gordura todas, uma por uma daquelas artérias fininhas, aí a coisa só complica. Melhor viver assim mesmo, sem fígado, sem estômado, sem artérias, sem LDL e nem nada do gênero, mas com papilas gustativas, porque ninguém é de ferro. Muito menos Deus, que não é feito de ferro, nem de carne, nem artérias, nem de barro. Deus é feito de pensamento. Ele diz que é feito de luz, porque é mais chique e invoca um certo ar de mistério esotérico, mas na verdade Ele foi feito a partir do pensamento e das intenções dos homens e mulheres (não necessariamente do boteco). Mas ele não pode contar isso para os bêbados, porque bêbado muda de ideia. Bêbado é um povo muito teimoso, mas também muito emocional. Já viu bêbado chorando em bar? Pois é, é um dramalhão. Aí se Deus para do lado de um e dá esse vacilo de dizer que é feito a partir da intenção do pensamento do povo, o povo resolve pensar umas coisas diferentes e Deus deixa de ser Deus e é até capaz de existir! Então, para quem quiser saber, Deus é feito de luz. Luz e cérebro. Luz, cérebro e papilas gustativas, sem estômago, sem fígado, sem artérias e sem LDL e com muita história para contar, por isso que Deus é bom. Porque conta histórias, bebe pinga, tira sarro de todo mundo, sai abraçado nos bêbados mas não delata os podres de ninguém. Bom, ninguém que o pessoal do bar conheça ao menos, porque Deus não é de semear a discórdia. Mas Deus não semeia a concórdia também. Deus é bom mas não é otário de ficar pagando rodada para bêbado vagabundo. Afinal, é terça feira três da tarde e não tem ninguém empregado ali (só o dono do bar e os garçons… O cara da chapa da cozinha também. Ah é, a tia da faxina, mas ela chega mais tarde). O resto, ó, tudo vagabundo. Podia estar na igreja rezando, né? Mas estão ali filando a porção de torresmo de Deus que, bom pai que é, faz vista grossa mas anota no caderninho mais esse pecadinho. E olha que ali no bar tem uns com o caderninho recheado, viu? Tem dia que Deus fica de boas, dá um abraço em todo mundo e sai feliz. Mas tem dia que o Alpha e o Ômega amarra um fogo de verdade. Sim, Deus fica bêbado. Bastante, porque ele é Luz e cérebro e cérebro cheio de cachaça dá nessas coisas aí. Sai trançando a realidade. O asfalto derrete colorido e se mexe que nem cobra embaixo dos seus pés, as sarjetas explodem em flores como pipocas recheadas de natureza, os postes onde ele escora para não cair no chão se retorcem e como vinhas de ira e onde ele toca e pecados capitais abundam, já que bêbado fala alto e sai cantando. Mas não vomita porque Deus é fineza e elegância e, principalmente, Deus não tem estômago para conter torresmo. Então o povo acha que Deus é divertidão! Figura expansiva, que sai abraçando todo mundo e cantando umas músicas bregas porque está com o cérebro boiando na caninha. Mas a verdade é que Deus não é feito de luz, e nem tem cérebro. Deus é um conceito virtual coletivo que veio dos cérebros dos homens e mulheres, dos bares e fora deles, então não é o cérebro que vem cheio de manguaça, são as pessoas. O povo bebe, Deus fica trilili. Ainda bem que Deus não dirige para sair batendo o carro. O povo gosta desse dia que Deus fica manguaçado porque ele perde os caderninhos dos pecados pela rua. Aí fica todo mundo puro e ímpio e o dono do bar enxota todo mundo e baixa as portas e vira as cadeiras em cima da mesa, porque lugar de gente pura e ímpia é na igreja. Bar sem pecado não tem graça, nem faturamento. O que movimenta o bar é pinga e torresmo. E maldade. Tem que ter maldade. Se é para lavar a alma de todo mundo que vá se apinhar em uma biblioteca. Já não basta que Deus deixa a continha pendurada. Só Deus não paga a conta nunca porque, primeiro Deus não é feito de dinheiro. Ele é bem anarquista nessa hora. Segundo que quando ele fecha o butequim e sai trançando as pernas como sempre faz, quem é que tem coragem de ir lá interpelar o homem, digo, a entidade? Ele é capaz de chamar uma praga de gafanhotos e sabe-se lá Ele como é que o bar ficaria depois. Nessa hora você deve estar preocupado com o prejuízo que o dono do bar está tomando, né? Não se preocupe, quando acorda naquelas ressacas brabas, Deus percebe o estrago da noite anterior e volta para apagar o passado e reescrever a história. A vantagem de ser onipotente é essa: se Ele não quer, Ele nunca esteve lá. Ele poderia fazer as pessoas esquecerem, poderia fazer dinheiro aparecer em cima da mesa, poderia até endireitar o poste e solidificar as calçadas. Mas é mais fácil e rápido voltar no tempo e pronto. Melhor do que correr o risco de alguém filmar a baixaria com o celular, né? Depois tem que ficar revirando o Instagram e vai que viraliza… Deus tem que manter a reputação.

a moça do brinco amarelo

Às vezes algo de muito bonito acontece no centro. Ela é uma dessas coisas. De trás do balcão eu a observava passar, sempre às cinco horas. Linda, linda. Era alta, vistosa, lábios cheios e peitos grandes e redondos. Morena, de cabelos pretos sólidos e pele bem branca. Havia claro, o brinco amarelo. Um só, do lado esquerdo. O resto era perfeita simetria, como se ela fosse feita com régua e compasso. Ela despontava no final da rua vestida como uma insinuante executiva. Perfeita. Sempre às cinco horas. Do jeito que ela vinha, ela ía. Em linha reta da esquina, passando pela pastelaria, pela loja de R$ 1,99, o sex-shop, a lotérica e entrava no hotelzinho moquifento na outra esquina. É, eu sei o que você está pensando. Mulher bonita como aquela, toda arrumada, naquele pardieiro de hotel no centro? Mas não, não era o tipo. Não encaixava, sabe? Se ela não fosse tão bonita, eu não a seguiria. Aliás, nem notaria. Não é a única bonitona a entrar no hotel. Afinal, tem cliente que às vezes ganha no bicho ou economiza durante um tempo e pode pagar melhor. Mas quando ela vinha, alegrava o meu final de tarde tedioso. Como nada nunca acontecia atrás daquele balcão feio e sujo, a moça do brinco amarelo era o motivo para eu ficar no emprego. Ela vinha de vez em quando. Só uma ou duas vezes por mês, por isso no dia em que eu fui despedido, ela não apareceu. Mas apareceu três dias depois, no mesmo religioso horário, na minúscula e fedida recepção do hotel onde eu passara a ler velhas revistas Manchete à sua espera. Ela nem me notou. Eu a seguia por cima da revista. Enquanto eu estudava aquelas curvas exageradas, ela me deixou ouvir pela primeira vez sua voz aveludada: – Eu vim ver o Renato. – Quarto 21 – O balconista informou. Ela foi. Uma obra de arte ambulante subindo as escadas. Eu tentei puxar assunto com o balconista. – Eita… Esse Renato, hein? O homem me olhava com cara de poucos amigos e nem abriu a boca. Larguei a minha edição especial do carnaval e ganhei a rua, buscando por fora do hotel a janela do quarto 21. Ela apareceu, abriu-a uma fresta e sumiu lá dentro. Entrei pelas lojas, rodei os becos e escalei calhas para conseguir chegar ao telhado de uma delas e como um gatuno, passei de imóvel em imóvel até encostar as mãos nas paredes do hotel. Pé ante pé, inexperiente, eu bambeava pelo estreito parapeito das janelas até alcançar a que eu queria. A vista da rodoviária se tornava uma silhueta enquanto o céu alaranjava e arroxeava. As pessoas ocupadas saindo de seus trabalhos começavam a notar o equilibrista bêbado que brincava de homem-aranha. Meus dedos chegaram antes do que meus olhos à janela do quarto 21. Tateei e encontrei algo no que me agarrar, para que os olhos pudessem se espichar lá para dentro. A moça do brinco amarelo estava em pé no meio do quarto, vestida, altiva, com os olhos perdidos no tempo. Sentado na cama, Renato. Um jovem, um moleque. Pequeno, magro, de barba cerrada no rosto e camiseta com estampa de encontro de faculdade de arquitetura. No seu colo um bloco de papel A3 e ao seu redor na cama, canetas, lápis, nanquim, giz de cera, pincéis e muitos, muitos, muitos retratados rabiscados da moça do brinco amarelo. No seu bloco, ele terminava de traçar com firmeza linhas negras que davam à mulher seus contornos perfeitos. Assim como na vida real, seus lábios eram cheios, os peitos grandes e redondos, os cabelos sólidos e negros e o brinco, amarelo. Renato só deixou o bloco para alcançar a janela de onde eu me pendurava e esmurrá-la na minha cara, me desequilibrando e fazendo com que eu me espatifasse na calçada, não sem antes quicar graciosamente no Toldo Jóia que cobria a porta. Sobrevivi por pouco e corri muito, mas não fui muito longe. Desgarrei das pessoas, embrenhei-me novamente nos becos das lojas e, já na escuridão, subi pelas calhas, caminhei pelos telhados e retornei ao hotel, dessa vez entrando pela primeira janela disponível e atravessando o corredor até o quarto 21. O casal que ocupava o primeiro quarto nem se incomodou comigo, enquanto transavam alucinadamente. Encontrei o quarto vazio, logicamente, e na hora entendi que o Renato e a moça do brinco amarelo nunca mais voltariam para aquelas bandas. No chão ficou o retrato que ele terminava antes de me empurrar para cavalgar na gravidade. Tomei-o e levei para casa. Na parede do meu quarto agora está a moça do brinco amarelo, que eu nunca saberei o nome, mas que pisca para mim.

deus foi ali no boteco

a ressaca

Era terça feira e chovia, e Deus entrou sequinho no buteco porque Deus, bem, Deus, né? Onipotente e aquelas coisas. E que noite foi aquela! Deus no buteco faz coisas que até Deus duvida. E parecia que Ele escaparia dessa epopéia com a reputação incólume e o caráter ilibiado, como assim demanda A Liga das Senhoras Católicas, as últimas bastiãs da moral e dos bons costumes católicos, já que o resto do seu séquito fanático está mais interessado em guerra santa contemporânea contra qualquer coisa que contradiga sua própria moral e seus torpes costumes. Mas eis que, o acaso (também conhecido como Lei de Murphy), uma força universal mais poderosa que o próprio Deus quis que ele chegasse em casa, na terceira nuvem à esquerda da estrela d`alva, doidão na canjibrina, se esquecesse de reverter a realidade de volta ao momento exato em que fosse entrar no bar, reversão esta que o faria converter à esquerda no passeio público rumando para destinos mais nobres naquela terça feira à noite, tais como uma biblioteca, uma igreja ou uma reunião dos alcóolatras anônimos, onde ele é bem conhecido. Não aconteceu. Sabe quando você chega com o cérebro boiando em cachaça em casa e dorme de roupa e tudo e esquece de colocar o celular para recarregar? Ou na sexta à noite chega moído e esquece de desligar o despertador para o dia seguinte? Pois foi esse o clima: Deus nem viu o mostrador do relógio do tempo universal, caiu estatelado de cara no colchão celestial e apagou. Ficou o tempo correndo do seu jeitão – para frente e ao ritmo de 60 segundos por minuto. Deus não acordou no dia seguinte porque o dia é uma medida que compreende uma fração do período que a Terra, esta pequena esferinha azul, demora para se virar de costas. Um punhado de quatrilhões de oscilações da radiação entre os dois níveis hiperfinos do estado fundamental do átomo do césio 137, que é como a Terra decidiu batizar algumas horas não é exatamente tempo suficiente para que o Criador consiga curar uma ressaca daquelas das mais brabas. Um cérebro que comporta todo o conhecimento do universo em toda a sua história e um coração que comporta o amor a todas as criaturas de todas as espécies de todos os planetas que possuem vida aguentam muita manguaça. Mas você deve estar se perguntando: Deus Todo Poderoso em sua infinita sabedoria não conhece um bom truque para mitigar uma simples ressaca? Não teria ele concebido um fígado auto-limpante? Seria ele um virjão das baladas e nunca tinha bebido em toda sua existência? E mais importante, não há um equivalente cósmico do engov? Sim, ó fiéis, vedes a verdade: Deus é um bom cacheiro. Tão bom cachaceiro (aquele que cria a cachaça) quanto bom cachisista (aquele que exerce a cachaça). E por que não dizer, cachaçólogo (aquele que estuda a cachaça). Nem uma folha cai da árvore sem que Deus assim o queira, nem pinga a marvada no estômago sem que Ele o controle. O problema desta vez foi que, da mesma maneira que caiu desfalecido em sua cama de nuvens sem atualizar a função “soneca” do reloginho do tempo universal, quis ele fazê-lo em seu último pensamento antes de fechar os olhos e roncar como um Massei-Ferguson 1967 batendo as bielas. E a pura intenção de Deus já basta para que a realidade se altere, Ele que com um sopro fez a vida. Enquanto o relógio corria solto, deixando suas pegadas na eternidade, uma nova realidade daquela noite do canto dos pingaiada brotou para comprovar que aquela noite na verdade, nunca havia existido e ter duas realidades contraditórias rodando em paralelo sim é motivo para a maior ressaca que uma entidade de luz possa conceber. A realidade é a pior manguaça que existe. Duas delas então, são dose para elefante! Decorrido um milênio e um tantinho em pulsos da radiação entre os dois níveis hiperfinos do estado fundamental do átomo do césio 137, Deus acordou querendo cancelar a própria existência e deixar o universo à Deus dará, o que seria uma interessante contradição das possibilidades do comando dos céus. Sentou-se nas nuvens juntando coragem para abrir os muitos olhos (onisciência, lembra? Então, onisciência quando se está de ressaca é um poooorre!) Abriu um, mas só uma frestinha. Depois o outro, também uma frestinha. Depois mais um, e outro, e outro ainda, muito lentamente tentando se acostumar com o brilho das auréolas dos anjos que zuniam atarantados ao seu redor. Correu a mão pelo rosto, provavelmente para verificar se estava tudo ali e sentiu o gosto pastoso e ácido na boca. O refluxo derrubaria esquadras inteiras de porta aviões. Teve a sensação que subira da Terra lambendo o corrimão inteiro da escada que dá acesso ao paraíso, que fica depois de Alpha Centauri, uma distância considerável. Tentou erguer-se, sem sucesso, claro, e decidiu retornar à operação de lenta abertura de olhos, gerenciando a dor nas suas milhares de córneas. Essa operação poderia ter consumido mais alguns milênios se Deus não lembra-se que era Deus e poderia fazer o que diabos quisesse com o universo inclusive, apagá-lo. Murmurou que “desfaça-se a luz” e tudo virou breu novamente e Ele viu que era bom. E depois viu que não conseguia enxergar porra nenhuma e decretou que “faça-se uma luzinha bem suave” e tudo se tornou como um quarto de bebê com aquelas luzinhas brandas de espetar direto na tomada e Deus aí sim viu que era bom e logo em seguida ele viu à sua frente duas realidades paralelas contraditórias corriam atritando uma na outra. “Fudeu”, Deus pensou. Desta vez, colocar-se de pé não foi tão ruim. Dureza foi o primeiro passo. Quando a sola de seu pé aterrissou na nuvem em que estava, um calafrio subiu pela sua perna causando um abalo sísmico pendurado para fora da escala richter que fez a maçaroca de torresmo, polenta, sardinhas, azeitonas, croquetes e empadas submersas em pinga se revoltarem, criando um tsunami cósmico que escalou pelas paredes do estômago e arranhou seu esôfago. Aquilo não ía acabar bem. Deus olhou ao redor e calculou a distância até o banheiro, depois a distância até a sacada e depois a distância até o vaso de plantas mais próximo, tentando decidir qual seria o tamanho do dano à sua reputação e se seria esse maior do que o dano ao seu cérebro. Não se importava muito com a devastação dos neurônios, mas a sensação de que usavam seu crânio como bigorna para forjar cometas era única. Virou-se para o banheiro, talvez um pouquinho mais rápido do que deveria porque sentiu o chão inclinar e o tsunami dentro do seu estômago mudar de direção. A hora da erupção se aproximava e cada passo era uma tortura. Deus ainda ouvia o ganido estridente das duas realidades se esfregando uma na outra como um garfo riscando uma lousa e os anjos não paravam de fazer perguntas sobre como lidar com as duas realidades em atrito. As auréolas dos mensageiros brilhavam em seus olhos, o farfalhar desesperados das asas mareavam seus olhos e as harpas, bem essas são irritantes esteja você de ressaca ou não. Isso fazia o trabalho de Deus – entender a realidade – ainda mais difícil, de tal maneira que ele até se esquecia que era Deus, tão concentrado estava na missão de colocar um pé a frente do outro até o banheiro, nesse chão das mais altas nuvens celestiais que, no momento, não eram macias o suficiente para o trajeto. Quando Deus se lembrou que era, efetivamente, Deus, lembrou também que além de Senhor do tempo e das realidades, era também Senhor das distâncias e, onipresente que era, descobriu-se já dentro do banheiro que tanto almejava, longe dos enxeridos anjos. Dentro do banheiro, deparou-se com mais um problema de ordem existencial. Sendo onipresente, poderia estar em qualquer lugar, o que quer dizer que estava em todos os lugares. Estava, portanto, já posicionado na privada. Porém, sua onipresença não queria dizer oniposicionamento, ou seja, poderia estar na privada, por default, assim como em qualquer outro lugar do universo, porém teria que decidir racionalmente se neste local ele ocuparia o troninho sentado como um imperador, ou abraçado, como um imperador porém um imperador apeado do trono e se agarrando a ele como se sua vida dependesse disso. O turbilhão estomacal revirava-o de dentro para fora anunciando, com calafrios e espasmos sua saída, mas Deus, com capacidade de processamento limitada pela marvada, não conseguia decidir por que lado o diabo deixaria o seu corpo. Só sabia que sairia gritando e arranhando. Em pé contemplando a água que ele poderia dividir ou caminhar sobre exitou. Buscou a cinta das calças para arriar, mas preparou também o apoio para os cotovelos. Flexionou os joelhos. O dobra do estômago quase o fez explodir. Desistiu, esticou-se. O esticar do estômago quase o fez explodir. Suava frio. Tinha tonturas. Mirou o vaso, mudou de ideia. Fez menção de virar-se, mudou de ideia. Virou de novo, sentiu mais tontura e perdeu o equilíbrio, apoiando-se na pia em franca ebulição. Tão poderoso foi o jato que Deus urrou que atravessou a louça da pia, levando consigo os ladrilhos, reboco, cimento e tijolos, deixando um buraco chamuscado perfeitamente redondo como em um desenho animado. Arfando, suado e limpando vestígios de sua longa barba outrora branca, Deus observou o estrago e a gosma cósmica flutuando do outro lado do limite de seu reino, no vácuo da inexistência. Constatou que tinha vomitado uma das realidades. Problema resolvido. Mas quem sabe da próxima vez vamos evitar o croquete.

a pandemia levou babu ao fim do mundo

Brasil, 20 de abril de 2020 Localização desconhecida (é mentira, todo mundo sabe onde é, mas assim fica mais impactante) À noite na grande mansão, os passos do homem ecoam pelos ambientes vazios. Babu, um dos dois remanescentes olha aquele cenário agressivamente colorido e decorado com mau gosto pela última vez. Pelo bem ou pelo mal, esta seria sua última noite debaixo dos holofotes. De banho tomado e barbeado, ele ruma para a sala principal onde se apinharam seus colegas nos últimos 3 meses. Ele sabia que sentiria tanta saudade daquelas pessoas quanto da casa: nenhuma. Eram pessoas de mentira debaixo de holofotes em uma casa de mentira. Era uma casa cenográfica, com todas as suas funcionalidades. Mas era apenas uma casa. Não um lar. Ninguém se sentia à vontade ali. Bom, esse era o propósito do jogo: se sentir incomodado a ponto de incomodar os outros e ter suas ações e reações medidas pelo telespectador. A casa que ele compraria para receber seu filho seria o exato oposto dessa. Ah, seu filho… Que moleque lindo ele era. E que provações ele passara depois que a carreira do pai desabara. E ainda não saberia explicar por quê. Depois de tantos filmes de sucesso… Enfim, passado. Passou. O agora é que estava a sua frente e ele tinha que lidar com o agora. Ali naquela sala ampla, de móveis abjetamente coloridos. Seu colega (e oponente) já estava por ali, em frente à gigantesca televisão. A produção avisava pelos alto faltantes para que Babu se apressasse para o anúncio da última votação que decidiria se ele seria o campeão e levaria a bolada de um milhão e meio, ou segundo lugar, com apenas cento e cinquenta mil. “Apenas” cento e cinquenta mil pagava suas dívidas. Colocaria comida no prato do filho. Dava para sair de merda. Mas não do aluguel. É, não dá para piscar. Ser preto e pobre no Brasil é isso mesmo, você não vacila um segundo senão te engolem. Os alto falantes que as câmeras não mostram estalaram e a mesma voz de sempre da produção anunciou o início da transmissão ao vivo para todo o Brasil e logo o chatão do Tiago Leifer apareceu na tela. Falou sobre essa edição do Big Brother, falou sobre os programas anteriores, falou sobre jogo, estratégia, sobre as alianças os desempenhos dos participantes e foi enrolando e enrolando. A tensão crescia enquanto ele não revelava os resultados. Babu não percebeu mas já estava abraçado ao adversário. – … e com 62,7% dos votos, veja bem isso é quase 750 mil telespectadores… – 750 mil? – Babu pensou – A audiência deve estar muito fraca esse ano – … o vencedor é… Pausa. Música. Tambores. – Alexandre da Silva Santana, o Babu!!!! Vem para cá, Babu!! Babu cai de joelhos, com o estômago gelado. Demorou para entrar a informação. Seu colega (e oponente) o abraçava, sorrindo, mas nada feliz. Babu ergueu as mãos para o céu e contemplou os diversos holofotes no teto. Era isso! Chegara a sua vez! Ele ía sair da merda voando. Dispararia merda afora como um foguete, arrastando pedacinhos de merda pelo ar, pulverizando o Rio de Janeiro todo. Seus filhos! Seus filhos iriam para uma escola particular! De carro! Vão andar com playboys, vão ter futuro. Vão ser metidos e folgados como os outros playboys. Chega de perrengue! A música dentro da casa era alta. Ele e o colega saíram pela porta da sala para o jardim e bem a sua frente, a porta de saída. A tão temida e desejada porta de saída. Abriram os dois mas só Babu correu. Esperava o abraço gostoso do seu filho que deveria estar do lado de fora. Como todo brasileiro, ele já havia vista essa cena 20 vezes. Aquele corredor escuro de cimento dava em uma cortina e depois dela, uma passarela com arquibancadas dos dois lados. De um lado seus amigos, seus parentes, sua ex mulher… Do outro, os amigos e parentes do segundo colocado. Haveria chuva de confete. Mais música, câmeras, luzes, o apresentador… Bem que podiam entregar o cheque ali mesmo! Já ía sair gastando na porta do estúdio. Mas isso não aconteceu. Nem o cheque, nem a plateia. Nem os amigos, parentes. Nem seus filhos. Na passarela ele estava sozinho, cercado por câmeras e monitores. Em um dos monitores, bem a sua frente, Tiago Leifer o esperava com um grande sorriso. – Parabéns, Babu!! Que sucesso! Eu tenho certeza que sua família está muito feliz por você agora! – Porra é essa, mermão?? – Olha só, Brasil, Babu já está pronto para os agradecimentos a todos que votaram no nosso site. Dá um microfone para ele. Uma moça pequena vestindo um traje de proteção contra radiação se aproximou correndo, agachada para tentar não aparecer nas câmeras e entregou a ele um microfone sem fio. Aturdido, Babu o recebeu e ainda espero enquanto ela borrifava álcool no microfone e nas próprias mãos. Depois correu para a proteção fora das luzes. – Mas que porra é essa? Cadê todo mundo? Minha família, meus amigos, cadê a família do cara aqui? – Parabéns, Babu! Diga para o Brasil como você se sente agora! – Tiago Leifer o ignorava totalmente. – Para, ô caralho! Quero saber o que está acontecendo aqui! – E aqui termina mais uma edição do Big Brother Brasil 2020, que consagrou Babu como o campeão. Você escolheu, você votou e seu voto foi decisivo! Essa emoção, só a Globo traz para você! Boa noite, Brasil! FIque agora com o Jornal… Ei, Babu, onde você vai? Corta! Corta! Babu, volte aqui. O microfone já estava no chão e Babu arrastava os pés em direção ao que parecia ser a saída para a rua. Que merda! 3 meses enfiado nesse inferno… – Calma, Babu, espera aqui. Nós tivemos que fazer uns pequenos ajustes técnicos na festa de saída, mas está tudo bem, você ainda é o vencedor! – Vencedor? Vencedor de quê? Cadê todo mundo? Parece que eu só ganhei papel picado – Ele gritou contra o televisor mostrando um punho fechado cheio do confete coletado do chão. – E você? Onde está que não aparece? – Bem, Babu, você sabe que com a pandemia do Corona Vírus… – É, eu sei, eu sei, todo mundo resfriado, pessoal de terceira idade mais vulnerável… – É, mais ou menos. Na verdade era pior do que a gente esperava. Durante o tempo que durou o programa a população do Brasil caiu para apenas 50 milhões de pessoas. No mundo inteiro sobraram mais ou menos uns 2 bilhões. E nós tivemos que realocar toda a nossa produção para um local um pouco mais seguro. Eu estou transmitindo de Miami agora… Babu gelou. – Meus filhos! A minha…!!! – Calma, eles estão todos bem! Estão bem! A produção os levou para uma casa um pouco afastada da cidade, um local com bastante álcool gel. Na saída haverá um motorista para levá-lo até eles. – Por ali, né? Babu não estava gostando nada daquela conversa. Virou as costas para a saída antes que mais uma má notícia o alcançasse. E antes que chegasse à porta, Tiago o chamou mais uma vez. – Sabe, sobre o seu prêmio… “Lá vem…” – Como o sistema financeiro do Brasil entrou em total colapso, ainda estamos tentando descobrir como fazer para te pagar… Sabe, os bancos não estão operando em toda capacidade… Mas a boa notícia é que com a desvalorização do Real, o prêmio de um milhão e meio equivale a uns dez mil dólares somente, então não vai faltar… Babu não ouviu o resto da ladainha. Como já havia sido sacaneado antes, já reconhecia a cantilena toda. Ao menos a história do motorista era verdade. Na calçada um motorista de terno preto e máscara de proteção bacteriológica o esperava pacientemente. Abriu a porta do carro com luvas de látex que ele retirou virando-as do avesso dentro da outra e jogo no chão. – Ô filho da puta, não polui mais! Depois essa merda entope um bueiro e dá alagamento! O motorista pinçou com as pontas dos dedos as luvas como se erguesse o cadáver de um cachorro putrefato. Babu imaginou ele esfregando álcool gel até os cotovelos antes de partir. Do lado de fora do Projac, o cenário era de abandono. Parecia que o carioca tinha levantado e saído correndo, derrubando tudo no caminho. O Rio, maravilhoso Rio nunca fora muito limpinho, mas o estrago parecia pior do que Ipanema em primeiro de janeiro. Só faltava a polícia e os bêbados. Faltava todo mundo. Não havia ninguém nas ruas, nas lojas, nas casas, nos bares. Muitos locais haviam sido estourados e saqueados. Mas até aí não havia muita novidade. Aquela não era a sua cidade. O Rio era zoado, mas não era tão zoado. Do banco de trás puxou assunto com o motorista. – Vem cá, mermão, quando foi isso tudo? O motorista inteirou Babu dos acontecimentos. A pandemia do Corona vírus começara quase inofensiva. Era apenas um resfriado mais forte. Letal para pessoas sem proteção, como os mais velhos e os doentes, mas parecia que estaria sob controle em alguns dias. A China controlava os novos casos, os Estados Unidos testava uma nova droga e o Brasil… Bem, o brasileiro fazia churrasco, porque brasileiro é essa merda, mas parecia que estava se comportando, fazendo churrasco em casa. Ía dar certo! Um dia deu ruim. Muito ruim. Jovens morriam tanto quanto os velhos, os testes para identificar quem estava doente não funcionavam mais e novos casos apareciam em cada esquina. Parecia que a Terra estava se curando da humanidade. Morreu gente. Morreu muita gente. Mas você deu sorte, vai encontrar sua família logo logo… – Ainda não – interrompeu Babu – Sobe o morro. – Sr. Alexandre, é melhor ficar em casa para evitar a contaminação. E os pobres foram os mais afetados, não deve ter sobrado ninguém no morro. – Vaso ruim não quebra. Sobe lá que ele ainda está vivo. continua… A Globo não tinha enviado um baita carrão. Era preto, reluzente. Mas não era uma limousine. Era um carro grande que Babu nem sonhava em comprar, mas não era um artigo de luxo. Era só um carro bom, coisa que brasileiro adora, menos quando tem que subir o morro com suas vielas apertadas. Ali o cenário não tinha mudado grande coisa. A favela continuava suja e feia. O motorista não tinha mentido, os pobres eram os mais afetados e não se ouvia som do comércio, crianças brincando, mulher berrando na janela com a vizinha, pancadão no porta malas do carro, nada. O silêncio dizia abandono, mas esse silêncio era o mesmo de sempre, de quando tinha operação da polícia, tiroteio do tráfico. Nenhuma novidade. Em outros tempos, o carro preto subindo atrairia olhares desconfiados. Ninguém veio à janela fofocar, nem saudar o novo campeão do Big Brother. Mas Babu e o motorista não estavam sozinhos. Os olhares de espreita nas lajes e nos becos davam a ele a certeza de que o traficante estava vivo. – Quer café, Babu? – Olha, vou aceitar. Essa é a primeira vez que alguém me trata com respeito e dignidade desde que eu saí lá da casa. Açúcar, sim, por favor. Xícara na mão, Babu relaxou no sofá velho carcomido da casa do traficante. Afagou o cachorro que dormia sentado ali e contou alguns episódios por trás das câmeras do programa e logo desviou o assunto para onde queria. – Mermão, cê sabe que a gente tem história desde moleque, né? Quebra essa para mim. – Sem problema, Babu, não sobrou muita polícia subindo o morro mais. Tá tudo certo. Mas essa aí que você quer vai custar R$ 100 mil. – Ô, cuzão, repete aí que eu acho que eu devo ter ficado surdo de tanto playboy gritando na minha orelha lá na casa do Big Brother. Você falou quanto? – R$ 100 mil, Babu, não tem outro jeito. O Real já não vale mais tanto e todo mundo está querendo um. Você tem sorte que eu tenho essa para você… Babu ficou quieto um tempo. Enquanto a Globo não pagasse nada, se é que pagaria alguma coisa ele ainda era mais um brasileiro fodido endividado até a alma. Isso se ainda pudessem cobrar sua dívida. Mas mesmo que o Banco do Brasil estivesse fechado e as empresas de luz e gás tivessem indo a falência, ele ainda não tinha um puto de um centavo no bolso. – Vem cá, deixa eu te propor um negócio. Quanto você acha que vale aquele carro lá fora? Demorou um pouquinho para convencer o bandido a aceitar o carro, mas enfim ele ordenou um moleque que corresse lá na casa da tia buscar uma sacola azul com símbolo da nike na lateral. O moleque voltou correndo. Babu abriu o zíper e inspecionou rapidamente o conteúdo. – Mas e… – Cartuchos? Ali no cantinho ó, preso com fita crepe. Tem uma dúzia aí, deve dar. – É, deve dar. Valeu, querido, não vou esquecer não. – Virou para o motorista – Ô, maninho… Como que é seu nome mesmo? – Rafael. – Rafael. Isso. Passa a chave para o homem. – Babu! A chave do carro? Você está louco? Mas esse carro… Babu falou entre os dentes, mastigando as palavras lentamente. – Passa. A. Chave. Para. O. Homem! Desceram a pé pelas vielas, Babu com sua sacola de ginástica azul da Nike e o motorista, de terno preto, reclamando do prejuízo e como é que ele ía explicar para o patrão o sumiço do carro. – Tá louco, Rafael? Que patrão? Tá todo mundo em Miami! Tão é cagando para você! – É, mas é que eu… Babu parou e encarou de frente o motorista. – Seguinte, mermão, o Brasil acabou. Afundou. Não tem mais nada funcionando. Mas se você quer mesmo esse carro de volta a ideia é simples: eu vou dar um pulinho logo ali, vou botar esse troço para cantar – ergueu a sacola – e depois vou para casa ver meus filhos. Você traz isso aqui de volta e pega o seu tão amado carro. Rafael pensou pouco. Ele não tinha escolha. Se virasse as costas, adeus carro. Se esperasse sentado, quem garante que Babu voltaria com a sacola? – Ok, combinado. Onde você quer ir? – Para Brasília. Rafael riu. Não seria nada fácil chegar sequer no pé do morro, que dirá em Brasília, que ficava há 1200 quilômetros. Babu não se apertou, continuou descendo o morro até encontrar um carro estacionado na porta de um barraco. Era um gol bola da década de 90 vermelho. Bateu na porta do barraco, já abrindo a porta. Rafael observou de fora e logo Babu saía com a chave nas mãos. – Como que você..? – Você não quer saber. Vamos, Brasília fica longe. Você dirige primeiro. Chegaram em Brasília no dia seguinte, cansados e com fome. Babu na direção. Rafael pediu para pararem em algum lugar para comer, mas Babu estava focado. “Já já a gente para”, como quem diz para uma criança que “na volta a gente compra”. Rafael sabia que a volta nunca chegaria. Havia um destino certo que Babu não queria dividir com ele, mas logo ficou claro quando Babu acelerou pela Esplanada dos Ministérios. Mais adiante ficava o Palácio do Planalto, morada oficial do Presidente da República. Após a densidade urbana de Brasília, a via que dava acesso ao Palácio era estranha. Uma pista dupla cercada de gramado. Na distância, só o prédio retangular e os grandes horizontes do planalto central. Não havia polícia, não havia guarda, não havia exército. Havia uma cancela metálica e uns tantos cones de plástico vermelho que Babu atropelou sem ódio, sem alegria. Só passou por cima, arrebentando as grades e faróis do golzinho como se aquilo fosse algo que precisasse ser feito. Mais caminho e logo estacionavam na frente das portas de vidro. Era um pacato fim de tarde e o suntuoso Palácio cercado pelo lago era deslumbrante. Rafael perdeu seu olhar naquela beleza toda que ele nunca sonhara em ver e mal percebeu que Babu havia espalhado o conteúdo da bolsa azul da Nike sobre o capô ralado e dobrado do carro. Ele calmamente inseria cartuchos gordos no lombo de uma escopeta de cano serrado. – Mas o quê você vai fazer?!!? Babu jogou a escopeta no ombro direito e sorriu: – Volto já. Você dirige primeiro na volta. Rafael observou o homem abrir as portas de vidro e entrar no imenso salão. E o final da tarde ficou silencioso. Babu olhou a sua volta e não notou nenhum sinal de vida. Nem um barulho, nem uma alma. Escolheu uma escada aleatória e subiu, calmo, sem pressa. Encontrou portas e corredores vazios. Voltou, escolheu outra escada. Nada também. Se aprofundou nos corredores e enfim, lá para frente ouviu um barulho conhecido. Aproximou-se e conforme crescia o barulho, reconhecia as peripécias do áudio de uma televisão. Em uma sala ampla de piso de madeira uma gigantes televisão passava uma novela. Em frente, banhada pela luz azul da tela, Jair Bolsonaro estava esparramado em um grande sofá branco, dormindo de cueca samba canção e um robe de banho aberto. Ao se redor, vasilhas e cumbucas de comida explicavam a pança redonda. Dormia de boca aberta e roncava. Babu chutou levemente a canela do presidente que acordou sobressaltado. – Quem é que…? – Limpou a baba seca do canto direito da boca – Você é aquele, Babu, não é?? Do Big Brother? No tocante ao programa já acabou isso aí? – É, seu presidente, acabou tudo. Bolsonaro olhou em volta e fechou o robe da maneira que pode. – Você quer um… ah, deixa eu ver… Tem uns pão de queijo aqui, taokey? É que eu descobri onde fica a cozinha essa semana, se você quiser… – Fica de boa aí, seu presida que eu trouxe um recadinho lá do Brasil para você. Rafael olhava fixo para a porta e viu Babu saindo, voltando em direção ao carro. A cara e o peito vinham respingados de sangue, como se fosse necessária mais essa dica dos acontecimentos do dia. Rafael havia ouvido o tiro, claro, que causara uma revoada dos pássaros que repousavam nos jardins. Babu entrou no carro e sentou-se no assento do acompanhante. Atirou a escopeta fumegante sobre o painel do carro. – Toca para o Rio, Rafael. – Você matou o cara?? – Por que? Gostava dele? – Não, não, eu até votei no Amoedo.

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