No princípio eram trevas.
E Deus disse: penso, logo existo.
E o ser humano pensou e pensou e pensou na própria existência e, em não entendendo nada da própria existência, resolveu inventar Deus, que disse um monte de outras bobagens sobre as trevas e sobre a luz e que tinha o dedo fincado no interruptor. Esse era a primeira versão da consolidação do mercado de Deus, mas logo surgiu um novo testamento que dizia que a luz era para todos e que todo mundo tinha seu próprio interruptor e que Deus era amor.
De lá para cá, o rebranding da moral humano virou moda e de vez em quando a gente vê que pegava mal algumas coisas que se fazia todos os dias tipo sei lá, sacrifício humano, genocídios, cozinhar com mel e azeite. Mas o rebranding sempre foi criterioso para não destruir a economia. Sacrifício em ritual religioso, por exemplo, era claramente coisas de bárbaros sem cultura. Já escravidão, bom, essa a gente segura mais um pouco porque senão quem é que vai plantar, moer e refinar todo o açúcar do mundo e a gente vai acabar que ninguém vai inventar a Coca-Cola. Aí fudeu.
Raramente a gente junta uma meia dúzia de velhos hábitos, tipo tratar a mulher como propriedade, queimar mulheres na fogueira e curar doenças com sanguessugas e faz um grande de um rebranding coordenado com todas as áreas do cliente. Aí chamamos isso de renascença. Um renascimento da humanidade. Uma nova visão de mundo! Um grande acontecimento! A nova moda em Paris!
Verdade é que, estatisticamente, a humanidade progride sim. A custos bizarros, mas progride. O percentual de mortes no nascimento cai ano a ano, a escolaridade média da população cresce, a fome diminui, a liberdade relativa. O ser humano progride, fato. Mas e o custo?
Bem, a revolução industrial foi uma renascença para a economia, as cidades cresceram e se desenvolveram, as relações trabalhistas foram padronizadas, a tecnologia deu passos largos ao custo de mortes mil, dano ambiental irreversível e capitalismo errático culminando em um contraste social abismal (John Rockefeller teve uma fortuna de centenas de bilhões de dólares enquanto um bilhão de pessoas vivia com menos um dólar por dia).
A Renascença Digital, essa mais recente, propôs tudo o que uma revolução propõe: abandonar os velhos modos, contradizer o que está estabelecido e prometia uma nova era de iluminação. O computador, esse elemento difuso que está em tudo o que pisca e brilha hoje dia, eu vi chegar. Eram caixas metálicas beges e desajeitadas que nos prometiam tudo - até o modo de vida dos Jetsons. E entregou de fato. Em parte, ao menos. Apesar do volume de produtividade, o trabalho não diminuiu. Os empregos sim, mas a carga horária não. A nova alfabetização digital só exclui quem piscou ou estava olhando para o outro lado e pronto.
E qual foi o custo de termos Instagram farto e largo? Bem, graças a meia dúzia de moleques gananciosos no vale do silício, as cidades cresceram e se desenvolveram, as relações trabalhistas foram padronizadas, a tecnologia deu passos largos ao custo de exclusões mil, dano ambiental irreversível e capitalismo errático culminando em um contraste social abismal (Jeff Bezos tem uma fortuna de centenas de bilhões de dólares enquanto um bilhão de pessoas vive com menos um dólar por dia).
Pelo menos, eu espero que estejamos vivendo uma renascença, porque ao menos saberemos que, ao fim e ao cabo, quando a poeira abaixar o mundo estará um pouco melhor do que esteve ontem.
Enquanto isso, redes sociais valorizam informações erráticas, desencontradas, falas ou até criminosas, pingando um centavo em cada uma dessas, manipulando as pessoas e construindo fantasias bizarras que até sacrifício humano perigam resgatar. Sim, o ser humano tem esse talento para viver de velho testamento.
Não tenho saudade das trevas, mas olha... espero que a história nos perdoe...
Commentaires